A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet , o príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos - vis porque são nossos e vis porque são vis.
O amor , o sono, as drogas e intoxicantes , são formas elementares da arte , ou , antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas o amor , sono ou drogas tem cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se , e , quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela.
O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele. Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso - o silêncio da paisagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objetivo.
Possuir é perder.

Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência.



* Fernando Pessoa, Livro do Desassossego - tópico 270


* Ilustração, William Blake

| Por Prensada | quarta-feira, 20 de agosto de 2008 | 18:40.